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segunda-feira, 10 de outubro de 2016

Realejo


Cada pessoa guardará
desta noite
Um bilhete com a música
de um realejo
Mas nada se sabe
se o bilhete é a senha
de um sonho
ou se esta noite
é o grande estuário
de um plano oculto
a que chamamos
Mundo

                  

terça-feira, 4 de outubro de 2016

Veleiros de vento



Se do mar nada voltar
resta a palavra aberta
uma posta onde escrevo
seus grandes enredos de água

Se seu chão não estornar

os búzios em que me embebo
fica a sinfonia líquida
e as dunas dos seus segredos

Se seu continente azul
não comportar meus poemas
ficam os veleiros de vento
em que velejei seus
momentos

sexta-feira, 2 de setembro de 2016

Jornada



                                                      

Por ter a imensidão como jornada
mas não as mãos para abarcá-la
abstive-me de ser seu remador
no barco adernado dos acasos

Por ter a imensidão como empreitada
mas não os arreios para lhe dar
prumo
abstive-me de ser seu navegador

Agora sigo mudo
com uma velha mochila abarrotada
de claridades do mundo                                                

quarta-feira, 24 de agosto de 2016

Redes de vento





Trabalhar o mar
trabalhar as mãos talhadas pelo tempo
com elas esculpo signos
tenazmente pela madrugada

Com elas movo moinhos
que me movem por países de silêncio
onde espreito as palavras
com minhas redes de vento

Esta é a função que exerço
semear na pátria das falas

Esta é a função que entendo
noite a dentro com as palavras
por estações de vocábulos
e calendários de águas

         







             

-



Poema para o pai



                                        Poema para o pai
Pai, o que faltou de ti para abarcar
sobrou de mar e pescarias ao luar
O que faltou de ti para compreender
sobrou em mim para te reescrever 
O que em ti faltou para me perder
sobrou em mim para te achar
Agora te levo como um menino
pelas dunas do entardecer
e me perguntas se sou teu pai
e me indago se és meu filho
                                  Francisco Orban

              
´











Calcários



Calcária noite
feita de costados
Deste lado do tempo
vejo
um rio com seus barcos
alquebrados
passar pelo mundo ao acaso
E deste rio sou a permanência
quando traz aos meus olhos seus cansaços:
os seus pomares de águas
os seus haras de silêncio
onde semeio sempre
as palavras de que me sirvo

Poema de barro




Noite dos dizeres
derramados
Sob o luar
uma sinfonia
Frágeis as mãos
talham o barro
da vida que seria
E assim este
faz-se verso
no corpo do poema
até tornar-se pássaro
e ir-se na ventania
Então pensa o homem
que é ave
o barro
de sua poesia

País azul

De noite durmo com
as canções 
da infância 
e  descanso em  seu porto
abandonado
Se estou nela
e já longe apartados
são  apenas contingências
do passado
habito ainda em seu  
país azul 
de embates estelares
trazidos  ao
longo do tempo

sexta-feira, 12 de agosto de 2016

Só o deserto






Só o deserto
meu amor
sabe do meu amor
por você
nem a cidade
com seus bichos
pousados
nem a decisão
de sonhar
ou morrer

Só o mar
com seu tremor
diário
atrelado à voz
dos que sonham
e os peixes
com as presas
do luar
sabem




O poema de amor






Muitos poetas te amaram
mas eu te amei muito mais
porque estavas
no coração selvagem das estações
do mundo
e as amarras que nos apartavam
sob o teu olhar desatavam-se
e tudo era o nascimento
da encantação

Muitos outros te amaram
mas eu te amei com meu amor sereno
e pousei uma flor
na palma da tua mão
E plantei um beijo no teu sorriso
e tu cobriste de doçura com os teus gemidos
o que era o início do mundo

Muitos te amaram
mas só eu segui contigo o caminho das águas
quando meu amor louco ressoava
e fazia debandar os navios


 Sol das esperanças
mar dos horizontes amarrotados de barcos
Aqui estou assolado pelas multidões de dias
e dos caminhos que encontrei pelo mundo

Ouça meu amor este poema
agora que o crepúsculo nos assedia
aceno para ti como sempre acenei

Desígnio do azul








Meu olhar de pescador
desconhece o vento
E sob o desígnio do azul
escrevo um verso
Se estou perto de Deus
não sei ao certo
Aqui os flamingos
desconhecem  o tempo
e planam  sobre o mundo
a céu aberto

Eu voo sob os braços do eterno
em mim tão perto
e obscuro

quinta-feira, 11 de agosto de 2016

Imensidão





Não é necessário
do mar guardar
a imensidão azul
Basta prever
o que dele exala
os búzios que devolve
com suas músicas náufragas
e as jangadas brancas
que desfralda
ao longe
bandeiras
de ninguém

Procuração do mar




Artesão dos signos
procurador do mar
O ar e seus inquéritos
fraudados
A vida e suas alianças
frágeis

Papel do mar








Que o mar cumpra seu papel
com seus búzios que a todo momento
me chegam com seus  sonetos de vento
e que levo aos ouvidos desatentos
Que o mar cumpra seu cordel
ao trazer-me o sentido do infinito
seu país azul amarrotado



terça-feira, 9 de agosto de 2016

Paraty





Naquele momento, olhando o mar com seu dorso amarrotado pelo vento, restabeleci novamente meu diálogo com Paraty e seu passado. A cidade fora então um lugarejo perdido de onde escoara o ouro. Suas igrejas loteadas dividiam os habitantes: uma para os senhores,outra para os mulheres brancas, esta para os mestiços e negros escravos
Num mundo injusto e segregado, a cidade era assim repleta de insetos e dejetos atirados nas ruas, sobre as calçadas de pedras trazidas de Portugal pelos navios. Pedras que não foram tantas quanto as pepitas de ouro extraídas pelos negros expatriados, que ,aqui, como escravos, também foram de suas vidas arrancados.
Assim chegamos do futuro a esta cidade pousada no azul como uma nave de luz no chão do mundo, toda feita de leveza pelos poetas que a restauraram e a reinventaram. Eles que foram os que possibilitaram a sua permanência, como se encontra, assim como seus fundadores que um dia conspiraram para que ela existisse assim como uma pétala. E desta maneira a vemos, com os nossos olhos transmutados pelo hoje, na ilusão de que Paraty de alguma forma tenha sido sempre esta que agora vivenciamos. É que, naquele mundo brutal, suas paredes já foram erguidas como são e talvez ela existisse assim, como veio a se tornar, posto que embrionariamente já existia no coração dos homens.




















sexta-feira, 15 de julho de 2016

Palavra






Que cais sufraga esta palavra
tão atônita em sua enseada?
Palavra minha única estrada



              Do livro:  No país dos estaleiros

quinta-feira, 14 de julho de 2016

Lua na noite

 Salta a lua na noite. Tudo é a imensidão do agora. Aqui estou no epicentro de um rio. Mas a mão de uma menina me busca e me leva para a calçada das horas. Em sua tez sinto a tez das águas. Ela me diz dos caminhos do mundo onde a esperança deságua. No meio da chuva estava o amor como uma granada calada.


Do livro    No país dos estaleiros

Tradução


Um homem 
não trai seu sonho
nem o deixa
sem o abrigo
da tarde

Assim o tem
como vestimenta
que não o deixa mentir
que o resgata 
do abate

Um homem traduz 
seu sonho
na sua forma
de cumprir a tarde

Como se sonhar
fosse só um ato
e não um difícil
encargo


Meninos





                                                      

                                                                                 

Em algum lugar da memória esta lembrança ficou retida. Um cinturão de água cingia os sonhos dos meninos, que eram mínimos, mas traziam consigo a companhia do sol. Naquelas tardes, misturados às areias e às folhas secas dos sonhos, desconhecedores do mundo e da fugacidade das coisas, os meninos achavam-se ao acaso da eternidade, na sua condição de meninos a brincar com a areia do mar e seus destinos.
         Creio que foi assim que se encontraram. Sobre as ondas do mar que quebravam perto. Eles não sabiam que crescer seria perde-se para sempre daquele estado de comunhão que os unia com toda sorte de seres ainda não banidos da terra.
         Eles não sabiam (sabiam?) que o navio do tempo os levaria e que as grandes tardes que pareciam países de sol e fuga, se perderiam, num inimaginável processo de renúncias seguidas, que envolviam o sistemático exercício do esquecimento. Então, muitos anos depois, já envoltos no processo de transformar as lembranças em fatos desimportantes, reencontraram-se junto ao mesmo mar, que era a terra de suas infâncias, e agora desgarrados da eternidade, mas encharcados de rotinas, não se deram conta de como foram felizes e de quanto estavam velhos e afastados da pátria de si mesmos e de como suas mãos já não mostravam as pétalas de um grande Deus solar, que um dia os guiara.

               
Do livro de Francisco Orban, Leilão de acasos, (editora Garamond 

segunda-feira, 11 de julho de 2016

Mero remador






Quisera eu
que sou um mero remador
ter o poder de enfeitiçar
as palavras
Elas sim me chegam
do nada
e se refazem plenas
na palma
do poema

Não refaço
as palavras
desato-as
de suas ciladas






terça-feira, 5 de julho de 2016

Canoas



         As canoas que um dia nos levaram hoje são esses veleiros, que do mar alto nos assistem em terra, sem que saibamos de suas pretensões. 
         Como os veleiros, amei um dia uma mulher, quase menina, que  de mãos dadas comigo resolveu andar pelos garimpos silenciosos do coração. E em se tratando de corações de  adolescentes, quanta dor rege esses seres feitos de transição e fúria, pois somos, nessa idade, mamíferos desgarrados, provisoriamente salvos do caminhar da manada (para onde?) se não para a sua própria devastação.
         Posso assegurar que ela me amou, e que juntos singramos uma linha no horizonte, deixando nossa marca entre as flores de um país que nunca aconteceu. Pelo chão de areia e seguindo os costados do mar, pisamos os búzios do esquecimento que o mar expelia, também em sua viagem pontuada de veleiros. O que ficou dessas tardes, que eram tabuleiros de sol e ventania? O que ficou de seu corpo belo, mais belo ainda pelas paisagens que construí e visitei? Não fosse o gosto de seu hálito, nada teria retido. Pertence às cinzas de um carnaval suprimido esta fábula que virou encantação e por isso dói neste ônibus das cinco, onde cumpro o roteiro dos mesmos caminhos. Como os veleiros, alguns amores deixaram descuidadamente que o vento do tempo os abatesse, com sua crueldade e seu crestar de horas. Mas não foi esse o caso. Como os veleiros, deixamos distraidamente que o mundo nos tangesse para longe, quando para longe virou a única rota de nossos destinos. E o que guardo dela são seus grandes olhos, perplexos, infinitos.











Festa dos ciganos




Marina
andei léguas de falas
para chegar a ti

Eu era escafandrista
das vidas e das almas
andava na São João
com medo de frio e bala

Tinha feito uma viagem
ao Nordeste e não deu certo
Tinha ido ao Polo Norte
vender gelo à turista

Agora estava de volta
cansado hipocondríaco
E tu estavas igual
com teu silêncio de seda
e tuas saias erguidas
na festa dos ciganos



terça-feira, 28 de junho de 2016

Estuário



Esta cidade aderna
sobre o mundo
e seu parapeito
Coberta com a cal
das horas
e dos solares dias

Seu enredo
assim se apresenta
-um milharal de luzes
na noite-

Frente ao mar
mas não a afrontá-lo
e sim como se dele fosse
o estuário

Mármore da palavra



No mármore
da  palavra
procuro a sinfonia
que me escapa
como essa noite
finda
da qual só ficou
a casca
onde se gera um poema
que ninguém abarca
Um relâmpago
do qual só se guarda
o espanto

segunda-feira, 27 de junho de 2016

Ônibus 614



A noite por dentro das horas e do amor
e os rostos deitados no chão do mundo
Assim caminháva-se
Trinta milhões de cigarras na pele das calçadas
e as pedras suando
e o cheiro de rio mata e silêncio
e eu sem saber navegar
e sem saber do mar
e o ônibus 614 levando os meninos 
e meninas
com seus destinos de vento
e se embrenhando por outros caminhos
e não chegando ao seu paradeiro

Nada mais se sabe desta terra
nem do rosto dos seus encantados
nem das disputas de carros
nas madrugadas das noites
de  um mundo sem fuso- horários

ônibus 614 passou
me arrastando para fora do tempo
para onde me deixei levar


Éramos filhos da terra
e havia os heróis e não heróis
os balões que subiam nas noites acesas
e seus caçadores pela madrugada
e o espírito da mata sobre os sonhadores
e os primeiros amores
e as guitarras que cumpriam seus acordes
e os dias com seus mares abertos
fora do tempo, onde caiu pelo ralo
a chave do mundo
e meu destino sem retorno
juntos



onde o ônibus 614 passava
antes de embrenhar-se no nada
e nos amarrar para sempre
nas tramas da madrugada


Um rio atravessava a cidade
sob a chuva que se estendeu por cem horas
entre pedras caminhões estrelas mortas
tudo desceu pelo dedo das horas
naquela vida assombrada
em que para sobreviver era preciso nascer
 em que para nascer era preciso descer
no ônibus 614
em um dia qualquer de fevereiro
no ano de 1968
em um mundo sem palavras
em pleno estado de comunhão

Não estava escrito nos braços
dos navegantes
nem no navio que nos fez sair
do dia comum
onde nos vimos em silêncio
recostados nos mesmos  bares e verbos
imunes ao tempo e seu grande cenário
enquanto o ônibus 614
passava
levando os meninos e meninas
com seus destinos de vento

Ventava nas janelas do tempo
ventava dentro da vida e da morte
ventava entre os versos vedados
e um rio entre nossas mãos crescia
e sua face era um rosto de terraços
a nos amarrar para sempre 
nas tramas do absoluto



O ônibus 614 atravessou vinte quadras
antes de cair no infinito

Tramo com o dia um poema
que se torne passagem
Tramo com os pescadores
uma canção para ninar o mundo
Enquanto o mundo não se nina
eu nino meu filho que me afaga
esperando o ônibus 614
que sempre me acena com a sua viagem impossível
antes de capotar nas ruas reais do dia

O ônibus 614 desceu a rua Rocha Miranda
e viu Cristina Maria feita de adolescência
e passou por dentro do tempo
entre as árvores desencontradas da esperança
pela experiência de ser guiado por uma estrela
que também por nós se guiava
pelos corredores azuis da noite
com o mapa do mar no bolso
com o mapa das águas no coração
Mínimos meninos
pisando nos trilhos de um trem que ia da alegria
a Itaguaí
mas que foi desativado
como foram oceanos
bichos palavras amores amigos
lutas violões ventanias






sexta-feira, 24 de junho de 2016

Calcários






Calcária noite
feita de costados
Deste lado do tempo
vejo
um rio com seus barcos
alquebrados
passar pelo mundo ao acaso
E deste rio sou a permanência
quando traz aos meus olhos seus cansaços:
os seus pomares de águas
os seus haras de silêncio
onde semeio sempre
as palavras de que me sirvo

sexta-feira, 17 de junho de 2016

Alpercatas

Estas alpercatas 
emprestadas
Curtidas 
com o couro
das estrelas 
e estradas
Para calçar 
servem
nessas ruas 
esgarçadas
onde o coração
solar
não serve


quarta-feira, 8 de junho de 2016

Uma orquestra




Com um rio
que não revela
seus versos
buscamos
noite adentro
a foz de toda palavra
Por fora
a madrugada
e por dentro
o breu e as trevas
E uma orquestra
de seres
que nos escondem
seus nomes
costeiam toda a paisagem
atenuando-lhe
a marcha

Imensidão




Não é necessário
do mar guardar
a imensidão azul
Basta prever
o que dele exala
os búzios que devolve
com suas músicas náufragas
e as jangadas brancas
desfraldadas
tal qual
bandeiras
de ninguém


segunda-feira, 4 de abril de 2016

Indizível



Longe das cidades mas perto
dos veleiros
abrigo-me sob os poemas
até nas entressafras  do mar
em suas  latitudes invisíveis

Assim procuro o não dito
como se a palavra
a que por si se basta
fosse apenas o preâmbulo
de uma grande saga
a ser contada


segunda-feira, 21 de março de 2016

Profecia



´

Quando voltar janeiro

e os versos escondidos pelas palavras

banais renascerem

nos acharemos por fim

com as mãos pousadas

sobre o açude das certezas

e novamente sob a imensidão

o nosso amor terá 

mar  e chão

segunda-feira, 14 de março de 2016

Altares

Estávamos todos integrados naquele bar caído. Pé-sujo da pior espécie bebendo álcool que é o sangue dos deuses esquecidos, ouvindo um hino de Paulinho da Viola, a que chamam apropriadamente de samba, e que nos fazia  irmanados, naquele sentido maior de estarmos vivos. Estávamos ali unidos sob a toga da noite, para sempre filhos de um mesmo sentido oculto de existir, que ali se anunciava em pequenos atos. Estávamos assim instalados no afago daquele momento absoluto a redimir a imprópria soberba que o álcool atiça, com palavras ao acaso, e gracejos dispensáveis em outros ambientes, mas que ali eram adornos perfeitamente necessários. Estávamos assim, dispersados da passeata chamada mundo, e recostados naquele pequeno palco do planeta denominado por alguns de boteco, mas que para nós era mesmo um altar, onde celebrávamos o mistério daquele momento, cada um a sua maneira, ouvindo um samba de raiz, que são as canções dos combatentes e sonhadores do mundo.

                





quarta-feira, 9 de março de 2016

Lua




Uma lua de prata pousava em seu rosto Não era agosto, não era nada. Só a lua de prata que o seguia. Então quis deixá-la, arrancá-la do norte da alma, mas ela com sua ausência o buscava. Viu então  que tinham remos e um rumo ao outro remava. Viu então que tinham os rostos da natureza das águas. Tentou esquecê-la, mas ela retornava; tentou então esquecer-se, mas sempre voltava para si. Tentou por fim dar-lhe o mar. O mar e seu país azul, os búzios de uma ordem naufragada. Mas nada foi possível. Então fugiu para dentro da noite, com os seres debandados de um sonho. E foi pior; na noite a lua reinava.

Constatações





Nunca move-se o poema
para onde o tanjo
e de suas revoadas
só guardo arranjos

Do sumo das palavras
que o consome
só retenho vagos cantos
que lembram veleiros
sem nome
ao sabor dessa
alquimia
a qual chamam
poesia

              Do livro "No País dos estaleiros" de Francisco Orban 

Nossas mãos








Só a palavra não basta
para expressar um verão
Falta a água
e seus corredores
salinos
Falta o mar
e seu país azul
em nossas mãos suadas
egressas de um sonho

terça-feira, 1 de março de 2016

Altares


Estávamos todos integrados naquele bar caído. Pé-sujo da pior espécie bebendo álcool que é o sangue dos deuses esquecidos, ouvindo um hino de Paulinho da Viola, a que chamam apropriadamente de samba, e que nos fazia  irmanados, naquele sentido maior de estarmos vivos. Estávamos ali unidos sob a toga da noite, para sempre filhos de um mesmo sentido oculto de existir, que ali se anunciava em pequenos atos. Estávamos assim instalados no afago daquele momento absoluto a redimir a imprópria soberba que o álcool atiça, com palavras ao acaso, e gracejos dispensáveis em outros ambientes, mas que ali eram adornos perfeitamente necessários. Estávamos assim, dispersados da passeata chamada mundo, e recostados naquele pequeno palco do planeta denominado por alguns de boteco, mas que para nós era mesmo um altar, onde celebrávamos o mistério daquele momento, cada um a sua maneira, ouvindo um samba de raiz, que são as canções dos combatentes e sonhadores do mundo.

                FRANCISCO ORBAN

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

Extinção



A extinção não dispensa os navios,
que nesses mares habitam com os homens.
Com seus caminhos  adernados,  sob conveses
do  abandono. O corpo de um navio
quando morre é triste, porque já não navega
um sonho. Mas mesmo com seu tombadilho
quebrado, persiste sua alma náufraga no assoalho
do nada velejando.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016