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quinta-feira, 31 de outubro de 2013
Na carne da vida
Palavras emergem
do açude do corpo
E as sigo
para que soltas do visgo da noite
tornem-se o pão do mundo
Não há descanso
Até que pousem na carne da vida
na música da vida
na foz dos acontecimentos
Navios
De que são
feitos esses navios
que do
ofício de existir
não trazem
os mapas
Descidos do
mar sem fim
para a palma
das
palavras?
De que me
servem
se não me
dizem
suas
jornadas?
quarta-feira, 30 de outubro de 2013
Porto abandonado
Velho outono ferido pelo país dos caminhos
por ti sitiei cidades e um porto abandonado
onde toda a dor escoava
Por ti vesti uma roupa de sobrados
sob as marquises de um sonho
E quando tudo exauria-se na noite
as almas dos poemas retornaram
como luas embrulhadas em um transe
segunda-feira, 28 de outubro de 2013
Ladrilhos
Nas ruas da tarde
os homens sangram os dedos
nos ladrilhos das palavras
Mas ninguém sabe
que canção muda
ficou retida
que ave de silêncio
pousou no ombro
da encantação
domingo, 27 de outubro de 2013
Nas costas das palavras
Incumbir-me do mar foi tarefa maior que o
meu sonho. Nisto falhei, mas a sombra luminosa de um poema me acompanha. Nas
suas dunas eu cresço, pois conheço os endereços, ruas e vilas, onde me levam as
palavras. Sou do mar e habito paisagens náufragas. Nas costas das palavras
esculpo a senha dos militantes da noite. Agora quebro os ossos da matéria e o
que ficou do nosso amor errante. Deito-te sobre a palha dos poemas emigrados
das metáforas incertas. A lua próxima do teu rosto te espreita. Teus seios
apontados para o meu delírio me afagam. Sou aquele que retorna ao dia.
No coração da matéria
Quebro a máquina de janeiro
no coração mudo da matéria
pisando estrelas e vísceras abertas
Sigo sem destino
fingindo ter destino
com a alma talhada por pedras
Mas a sombra de um menino me acompanha
diz-me ser eu mesmo antes de mim
Digo-lhe da morte das baleias e ele ri
Acendemos incensos pela noite
acudindo vaga-lumes descuidados
que agonizam no chão áspero da terra
Criamos com a areia do mar a fórmula
de salvar o mundo
usando serragem de estrelas
mas tudo é um sonho
Ele deita o rosto no meu peito assolado
por uma poesia sem dono
e diz ouvir os navios da infância
pergunta-me quem foi Gepeto
pergunta-me o que é o cansaço
pergunta-me sobre sua mãe e seu pai
sobre todos os movimentos dos barcos
que vê e me mostra no horizonte
onde eu
cego pelo hábito de viver incrédulo
não vejo o que sei que lá se encontra
quarta-feira, 23 de outubro de 2013
Boletim de brincadeiras
Domo o mundo
e o mundo me cega
É um jogo
é uma luta
existir nesta terra
Ensaio rotas
arrumo rumos
e trancam as portas
Em vez das flores
nascem musgos
Eu domo o mundo
e o mundo me anota
no seu boletim
de brincadeiras
quinta-feira, 17 de outubro de 2013
Alagados
Alagados do destino
o mundo que não é de todos
no rosto de um menino
De pés descalços
no agora
nas palafitas das horas
Definhando sem poesia
até tornar-se só casca
do que a claridade
prometia
quarta-feira, 16 de outubro de 2013
Alagados das almas
Imerso nos alagados
das almas
caído nas palafitas
das vidas
saqueadas
distante das noites
fevereiras
sobreviveu
porque o sistema solar
lhe trouxe o vento
E o ofício
de traduzir o mundo
gerou sementes
E as dunas das palavras
- agora, assentadas -
nele sobreviveram
terça-feira, 15 de outubro de 2013
Um poema
Um poema é
uma porta aberta
Um avesso
do qual se
volta
de si mesmo
E só por si
só
não se ergue
Só estrelas
nascem
a esmo
domingo, 13 de outubro de 2013
Espreita
Espreita
Espreito as pétalas de um poema
denso de noite e agonia
Nele residem acesos
nacos de sabedorias
Nele sinto a antiga tessitura
da palavra lapidada que
resta
Espreito o que ficou deste poema
que guarda em seu caroço
a tez do dia
Espreito este poema
à luz do mundo
Antes de desatá-lo
da tez da madrugada
Antes de apagar
o lampião da palavra
sábado, 12 de outubro de 2013
Os poemas são descuidos
E não há estação de fuga
pernoite em terras amenas
Os poemas são descuidos
das horas secas do mundo
Redes de vento
Trabalhar o mar
trabalhar as mãos talhadas pelo tempo
com elas esculpo signos
tenazmente pela madrugada
Com elas movo moinhos
que me movem por países de silêncio
onde espreito as palavras
com minhas redes de vento
Esta é a função que exerço
semear na pátria das falas
Esta é a função que entendo
noite adentro com as palavras
por estações de vocábulos
e calendários de águas
sexta-feira, 11 de outubro de 2013
Navios desatentos
Também se matam os navios
desatentos
deitados no horizonte
com seus tombadilhos
e sonhos
Também se cometem crimes
fora da rota do vento
Por causa de um momento
- um hálito de sereia -
deita-se tudo a perder
quinta-feira, 10 de outubro de 2013
Bandolins
Os bandolins tocavam claros
sob brandas tardes
era o carnaval
o cheiro das águas brancas
o furor das cidades
em que crescíamos
O gosto da tua boca
nos prédios em clandestinidade
Impossível recompor estes mapas
Éramos senhores incondicionais da utopia
Hoje somos índios demarcados
Mero acidente literário
terça-feira, 8 de outubro de 2013
Pedaço de búzio
Mar:
encontrei num pedaço
de búzio
mil noites engavetadas
que eu botava no ouvido
para ter a fala das águas
e a dimensão do mundo
feito um menino maluco
ARAGUAIA
Araguaia 1975
(Poemas dos anos setenta)
Asa
de anjo da noite
ruela
de luz
sobre
o mar
da
lua
Me
diz anjo da madrugada
onde
estão os mortos
do
Araguaia?
onde
estão os mortos
de
tantas lutas
onde
estão os mortos
da
ordem cotidiana?
Conte-me
anjo
da madrugada
dos
mortos das fábricas
e
dos conventos
dos
inconvenientes mortos
que
voltam
para
acusar a vida vendida
para
falar da moça que foi embora
e
lamentar o menino
que mal
nasceu
segunda-feira, 7 de outubro de 2013
Leilão de acasos
De início não foi assim que eu me via, ao levar a
minha pequena lanterna na bagagem das ações impossíveis. Assim eu segui as
hordas e passei a me permitir um namoro proveitoso com o absoluto. De noite eu
ministrava sob as estrelas o saber dos crucificados e durante esses cultos
dava-me conta da presença de pequenos seres, acampados por perto. Vinham
oriundos das regiões remotas orar pela terra e temiam que não sobrevivêssemos.
As vigílias se estendiam por noites envoltas em um clima de grande paz. Diziam-me
da existência de um criador que se tornara mortal ao se transmudar em toda vida. Ao mesmo
tempo falavam-me da nossa provisória vida. Uma noite acendi a lanterna para
vê-los, mas evadiram-se como num sonho, deixando uma frase tatuada em meu
braço: Extinção é para sempre. No dia seguinte pude voltar à mais
fascinante das aventuras, que é a transmutação do que somos em elementos
minerais e vegetais, como pedra, mar, floresta, mantendo-nos assim, em comunhão
com as almas dos bichos e das plantas, para de longe assistir ao ruidoso
tumulto da experiência humana. Francisco Orban ( Livro Leilão de acasos/ Ed Garamound)
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