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quinta-feira, 29 de outubro de 2015

Cercados do tempo



Escrever com dor
fere as palavras
que moram nos cercados
do tempo
Assim prefiro levá-las
às tardes onde pousa
a lua
Assim prefiro deixá-las
nas noites feitas
de vento

Trago as palavras
que são músicas
para os silêncios
que são falas

Longe das vozes
mudas
que são muros

                         Do livro "Recomendações aos sonhadores" de Francisco Orban

Semblante de água



De que fala esse homem
com seu semblante de água
imóvel velejando
nesse escombro de sonho?

De que fala esse homem
nessa cidade de prata
sobejo de agosto na boca
redemoinho sem rosto?

De que fala esse homem
com sua utopia sem nome
e o beijo das fadas
embrenhado no corpo?


                Do livro "Recomendações aos sonhadores" de Francisco Orban

Movimento das águas



Não foi o homem cego
que não atravessou a cidade
com as mensagens oceânicas
que ficaram por ser ditas
Não foi o topo da ilha
onde se largaram
no movimento das águas

vidraceiro de mãos cortadas
menino ambulante com mãos de amendoim
não vendido
vendedor de cocada expulso
de seu pequeno reino
moça atirada do trem sem vestes
homem sonhador morto
estatístico cansado de toda estatística

Para onde iremos depois de tudo
perambulantes da noite
entre multidões sedadas
com os anos da inocência esquecidos
com os andaimes das horas esgotando-se

Senhor convidado para o jantar
mulher culta do olhar desolado
para onde iremos
sem as palavras

do altar das ruas?

Do livro "Recomendações aos sonhadores" de Francisco Orban

Cavalos










Deixaram os cavalos partir. Agora galopam namorando a lua e seguem o rastro dos ventos. Vindos das águas e das ilhas, correm pela noite como dentro de um  transe. Com seus músculos em sintonia com o mundo, os cavalos não sonham as palavras dos homens. Exacerbados pelo enigma que os consome e lhes concede um tempo breve feito de  ternura e fúria.



            Do livro "Recomendações aos sonhadores" de Francisco Orban

Encontro com o mar



Esse encontro com o mar
não foi acaso;
veio com o destino
que nos rege,
que a uns escolheu
para a alegria
e a outros oferece
sua face.
Esse encontro com o mar
não foi acaso;
suas dunas salgadas
e veleiros
movem os sonhos
que um dia me moveram.


                  Do livro "Recomendações aos sonhadores" de Francisco Orban

Casebre das estações








Só no meu peito
- casebre das estações
perdidas -
guardei as hastes
dos poemas
arrancados


         Do livro

                       "Recomendações aos sonhadores"

                                 de Francisco Orban

Navios do mar



Navios do mar                                 
recostados
no movimento da tarde
Quantas vezes
contemplei
seus destinos
enquanto o vento
da paisagem
sobre outubro
e seus verbos
folheava as rimas
do improvável

Há quem me traga
agora
seus caminhos
sem costados
a tese de seus passageiros
cegos
o mapa de seus mundos
submersos
Enquanto eu
refaço em mim
o percurso
de seus visionários
as dunas dos aquáticos
diálogos
que ficaram
nos caminhos
do mundo

                        Do livro "Recomendações aos sonhadores" de Francisco Orban

Advento do verbo




O outono tem uma sinfonia
Vejo-o  com o olhar
dos que sonham
Para o outono nasci
mas me perdi
de sua aventura
Não o acho na noite
que construí
não o acho
no advento do verbo
nem no dorso
das canções belas
Para o outono nasci
mas o perdi
no córrego das ruas
e isso deixou sequelas
e deixou-me
as mãos largadas
e me trouxe
o silêncio dos pescadores
que tangeu
de mim meus navios
dizem que para a lua



               Do livro "Recomendações aos sonhadores"

                                 de Francisco Orban

Veleiros da madrugada



Se os veleiros
não nos seguirem
mais pelo mundo,
outras palavras
nomearão as coisas,
uma velha roupa de madrugadas
não terá mais sentido
e o vínculo com os sonhos
estará desfeito.

Mas o que impediria
os veleiros
de permanecer tão janeiros
em sua vigília de brancas
velas
no mar amarrotados de ventos?


   Do livro "Recomendações aos sonhadores"

                   de Francisco Orban


Caminhada



Levavam a mirra 
para o que ainda nasceria
com a terra sob os pés
e águas diluvianas próximas

Dentro do corredor da noite
levavam nas mãos
a palha dos anos
o rosto crucificado
de um Deus deposto
        
Não fosse a ordem
que os fazia caminhar
pelo deserto
seriam outros

Não guardariam em si
as dunas silenciosas

da imensidão 

             Do livro "Recomendações aos sonhadores" de Francisco Orban

Arrastão





As vantagens de um pescador
são muitas
As juntas de seus ossos
não se cansam
de tanta escuridão
Pois este pescador
trabalha com as ruas
Sabe que a matéria
de seu arrastão
são as palavras
que se esqueceram
de acontecer


               Do livro "Recomendações aos sonhadores" de Francisco Orban

O poema de areia



                  
                                                
Vejo em teu rosto
uma integridade tão bela
que a mim me pergunto
se não o guardarei para sempre
pelas estações da terra

Queria beijar-te
andar junto contigo
correr pelo corredor da noite
E contar-te que fui um menino
de vento
e que já te amava
mesmo antes de amar os navios
já te amava, quando tudo ainda
era o perfume da possibilidade
e a areia do amor
escorria por nossas mãos
nas tardes abertas
pelo sentimento de saber
que o amor estava ao nosso alcance
como os navios a poesia e os carnavais

O que aconteceu
me pergunto?
E mudo sigo pela cidade
com a foto do teu rosto
no coração,

Um tempo sem fim
ainda falta
para viver sem saber
o que a febre do nosso amor
nos traria
com sua leveza
seu estado de comunhão
e alegria

Pergunto agora aos veleiros
por que te aceno em vão pelo mundo
e por que a mim couberam as mãos
dos que esperaram tudo?
e novamente me vejo
diante de teu rosto
de uma integridade tão bela
que meu amor te seguirá para sempre
pelas estações da terra
como um dia, a mim seguiram
os navios a poesia e os carnavais


     Do livro "Recomendações aos sonhadores"

                          de Francisco Orban






Ônibus 614



A noite por dentro das horas e do amor
e os rostos deitados no chão do mundo
Assim caminhávamos
Milhões de cigarras na pele das calçadas
e as pedras suadas
e o cheiro de rio mata e silêncio
e eu sem saber navegar
e sem sabermos do mar
e o ônibus 614 levando os meninos
com seus destinos de vento
Nada mais se sabe desta terra
nem do rosto dos seus encantados
estacionados nas madrugadas
de  um mundo sem fusos horários
A noite por dentro das horas
e havia os heróis e não heróis
os balões que subiam nas noites acesas
e seus caçadores pela madrugada
e o espírito da mata sobre os sonhadores
e os primeiros amores
e os dias com seus mares abertos
onde o ônibus 614 passava
antes de embrenhar-se no nada
e nos amarrar para sempre
nas tramas da madrugada
O ônibus 614 passou
sob a chuva que caiu para sempre
entre pedras caminhões estrelas mortas
tudo desceu pelo dedo das horas
naquela vida assombrada
em que para sobreviver era preciso nascer
 em que para nascer era preciso descer
no ônibus 614
em um dia qualquer de fevereiro
em um mundo sem palavras
em pleno estado de comunhão
Não estava escrito nos braços
dos navegantes
Não estava escrito na cidade
onde nos vimos todos em silêncio
imunes ao tempo e seu grande cenário
nos mesmos  bares e verbos
por onde este ônibus passava
levando os meninos e meninas
com seus destinos de vento
Tramo com o dia um poema
que se torne passagem
Tramo com os pescadores
uma canção para ninar o mundo
Enquanto o mundo não se nina
eu nino meu filho que me aguarda
enquanto não cresce
enquanto espero o ônibus 614
que sempre me acena com a sua viagem impossível
antes de capotar nas ruas reais do dia
O ônibus 614 desceu a rua Rocha Miranda
e viu Cristina Maria feita de adolescência
e passou por dentro do tempo
entre as árvores desencontradas da esperança
pela experiência de ser guiado por uma estrela
que também por nós se guiava
pelos corredores azuis da noite
com o mapa do mar no bolso
com o mapa das águas no coração
Mínimos meninos
pisando nos trilhos de um trem que ia da alegria
a Itaguaí
mas que foi desativado
como foram oceanos
bichos palavras amores amigos
lutas violões ventanias

   Do livro "Recomendações aos sonhadores"
               
                          de Francisco Orban




Território sem chão






Esse território
não tem chão
são pontes noturnas
atravessadas
nas junções dos ossos
onde a poesia
depois de triturar
a carne
persegue seus seguidores
pela alma adentro


      Do livro "Cesto das canções com pássaros"

                 de Francisco Orban

A Cidade de luz






A cidade era de luz
e casas
enquanto nós
vestidos com a pele
das águas
deslizávamos imunes
dentro de uma geografia
que envolvia
o riso de Cristina
e toda orla marítima
não dominada

Saber sinfônico



Por ser um sonhador
quebrei o rio das falas
onde tudo se dizia

Envolvi-me com o grande
país do nada
onde o mar das horas
navegava

Imputei à noite
as normas de outra pátria
a poesia como saber sinfônico
Fui um breve escultor
do mundo
imbuído de solidões
gráficas

Arguí silêncios
para a sós com as palavras
profaná-las


           Do livro "Cesto das canções com pássaros"

                   de Francisco Orban

Minha namorada



Minha namorada
tem cabelos e silêncios
Pele de porcelana morena
Dilemas abertos
no seu corpo

Minha namorada
tem o sexto sentido
peitos apontados
para o meu delírio

De noite
ela pisa nos embriagados
distantes da terra


          Do livro de Francisco Orban

                        Cesto das canções com pássaros

Só o deserto






Só o deserto
meu amor
sabe do meu amor
por você
nem a cidade
com seus bichos
pousados
nem a decisão
de sonhar
ou morrer

Só o mar
com seu tremor
diário
atrelado à voz
dos que sonham
e os peixes
com as presas
do luar
sabem

                     Do livro "Cesto das canções com pássaros"

                      de Francisco Orban

Fadas






Abraço a maciez
das fadas
que me beijam
com bocas
descuidadas



       Do livro "Cesto das canções com pássaros"

                      de Francisco Orban

Os poemas






Os poemas são só delírios
Vagalumes perdidos
das esperanças que hibernam

Mãos de marinheiro





Ter mãos de marinheiro
e entender o mar
Ter mãos passageiras
e não afrontar o mar
porque os vínculos
do mar
são seus horizontes

Entender o mar
e sua latitude branda
entender sua fala
entrecortada
de arroubos
e seu marulho que desfaz
o mar dos sonhadores
porque o mar dos que sonham
é outro
e não move as águas
mas o mundo

Noites e versos





Todos os cães vadios
esperam que a noite se entregue
E nos recupere meninos
e nos resgate moleques

Todas as noites sem versos
têm a mesma natureza
Como as canções largadas
no bolso das velhas camisas

Todas as noites perdidas
vivem a sua profecia
sonham o seu destino

de acordarem dias

Inventários




Parece que foi ontem
O vinho era quase saudade
A vida era quase verdade
no grande país das horas

Parece que foi ontem
sofrer tinha quase um sentido
viver era um grande achado
e os vagalumes nos seguiam

Parece que foi ontem
o que a ventania nos dizia
O tempo passou redondo
breve alegoria

Subsolo










Debaixo do Rio de Janeiro
existe uma cidade de prata
me disse um dia uma moça
que tinha o rosto cansado
de amor cilada e desgosto



Do livro "Cesto das canções com pássaros"

               de Francisco Orban

Canções banidas





A noite interditou
os mais belos
versos
e a dor dos versos
soletrados
são hoje canções
banidas

A noite interditou
o mar
que chegava
à minha rua
com suas canções
de roda
lembrando peixes
antigos
de orlas distintas

    Do livro "Cesto das canções com pássaros"

                       de Francisco Orban


Horizontes



Morrer com as pedras
do silêncio
incrustadas
no chão do não
acontecido

Morrer com os versos
velejando
fora da matéria
do que somos

Morrer com os horizontes
do mar
adormecidos
no sangue


  Do livro "Cesto das canções com falas"
          de Francisco Orban

quarta-feira, 28 de outubro de 2015

Festa dos ciganos





Marina
andei léguas de falas
para chegar a ti

Eu era escafandrista
das vidas e das almas
andava na São João
com medo de frio e bala

Tinha feito uma viagem
ao Nordeste e não deu certo
Tinha ido ao Polo Norte
vender gelo à turista

Agora estava de volta
cansado, hipocondríaco
E tu estavas igual
com teu silêncio de seda
e tuas saias erguidas
na festa dos ciganos

   Do livro "Cesto das canções com pássaros"
   de  Francisco Orban

                  

Dezembros



Vendo na feira
dezembros e quartas-feiras
trazidos do território
da grande noite
inacabada


                Do livro "Cesto das canções com pássaros"

                               de Francisco Orban

Inventários de areia






Estes navios que vejo
sob os meus olhos acesos
são o cortejo que passa
dos meus sonhos adernados

andam à deriva
vindos da noite das horas
aos meus apelos se chegam
aos meus afagos se calam

com seus tombadilhos
de vento
desenharam no meu rosto
meus inventários
de areia

Resgate






Tua alma
foi retirada do mar
e recostada na areia
Trouxeram os vinhos
da terra
Ate um beijo de sereia

Perdidas as preces
Façam-lhe  o gosto
Aqui as frutas do mês de agosto

Passado o mar
tudo se fala
menos do sal
de suas águas


Tua alma agora
quer ser do mar
rever antigos mariscos
roçar nos velhos navios
cair em silêncio profundo
desintegrar-se do mundo

Arfar das palavras









Mora ao largo da matéria
o arfar as palavras
que tiradas do luar
dos quintais
retornam ao chão
andarilhas


Chegam como são
uns passarinhos breves
E tanto faz
que seus passos  sejam
como o entardecer
das ruas


Há um gorjear no mundo
que atrai as palavras
recostadas à tez da tarde
costeando o cheiro
dos grandes amores


       Do livro "Cesto das canções com pássaros"

                      de Francisco Orban


Moinhos






Reinventar-se com o mar
Atenuar as pedras das palavras
Moer os moinhos de vento

Alaridos



Os jarros postos na manhã
improvisam os pássaros
os navios ao acaso
improvisam os sonhos

Eu me improvisei
encantado
ando por aí
reconhecendo em mim
um rei que sonha

As palavras me espreitam
por toda parte
os alaridos dos signos
me acompanham 


   Do livro "Cesto das canções com pássaros"

                   de Francisco Orban


Tumulto a esmo








O mar desfazia
meu texto
Com seu tumulto
a esmo
jogava a madrugada
contra mim
que amei
suas gaivotas
que planavam sem fim
pela vida
bicando
sua sinfonia


 Do livro de Francisco Orban
"Cesto das canções com pássaros"

Memória do cais

           





Versos alinhavados
sofrem nos paus-de-cerca
Cobria-se a noite
com a memória
do cais

As coisas sem infinito
pereciam
A adolescência era
morna e seca

Uns breves anjos
pousavam no arfar do dia
Puíam a extensão das horas
com seus andrajos
ébrios de tanta
fantasia

Cumprir a tarde

                               



Um homem
não trai seu sonho
nem o deixa
sem o abrigo
da tarde

Assim o tem
como vestimenta
que não o deixa mentir
que o resgata
do abate

Um homem traduz
seu sonho
na sua forma
de cumprir a tarde

Como se sonhar
fosse só um ato
e não um difícil
encargo

Sujeitos/advérbios






Signos de ar
de noite desato
versos
que fogem
para o luar

Andam pelo telhado
zombam das minhas
metáforas

Esses sujeitos
advérbios
adjetivos ingratos
na voz do tempo
se encontram
 mas quando os busco
me escapam



                    Do livro "Cesto das canções com pássaros"

                                         de Francisco Orban

Tabela periódica





Minha cidade
tem verdes estações de chuva
e a matéria de suas ruas
são girassóis encapsulados

Minha cidade tem
namoradas morenas
Os seus estádios de futebol
são grandes palcos ensolarados
Os seus elementos de ar
regem-se pela tabela periódica
dos poemas dos sonhadores
da terra


A minha cidade
tem o mar
como o grande

divisor de tudo

Agosto




Agosto anoitecia
a tarde cercava os pandeiros
até que chegou o violão
e a tarde cercou os violeiros
Até que chegaram as mulheres...

Uma, levei-a pela mão
na noite desordeira
esbeltas como ela
havia tantas outras
mas suas mãos eram mar
e me beijava sua boca
e seu olhar eram falas
que me diziam do Outono

De um poema ela vinha
porém sem muitas palavras
envolta em fantasia
e cheiro de madrugada
E ela me trouxe junto
de suas pernas aflitas
A noite ficou coberta
de vagalumes parados
que nos assistiam ao longe
iguais a luzes suspensas

   Do livro de Francisco Orban

                   Cesto das canções com pássaros

Navios de vento



A palavra é recurso
escasso
mas se alimenta
de quintais
e eu me alimento
das palavras
que não cabem
na vida imposta
com seus navios
de vento
adernados nas horas

Alvoroço do teu abandono





De ti amei o imponderável
nos ramos escusos da paisagem
Em nós a estação do desencontro
alçou cumes
pois não guardei
a tez da tua pele
nem o alvoroço
do teu abandono

Palavras







Um dia achei as palavras
em um país a deriva
A noite se debatia
nos cata-ventos
da aurora

O que é agosto
é agosto
sussurravam as palavras
fora dos favos
das horas

O mar



O mar
e seus lençóis de vento 
Suas calcárias
noites
e seu silêncio
ruidoso 

O mar e seu tormento
que passa
suas dunas de água
e sua praça
principal

O mar
e seu molambo de lua
sua procuração
de lama
e seu diluvio azul
na ordem oficial

O mar
e sua estação de falas
e seu perfume não nascido
do planeta em que fomos
meninos

O mar
e sua libertação provisória
seus navios à deriva
entranhados
na memória da orla

O mar
e sua vida íntima
seu vento salino
salpicando nas canções
banidas

O mar como uma país
de esquinas
afogando seus afogados

O mar como o grande
senhor de tudo
sobre a cidade
que o situa
sitiada


     




Extinção






Os passarinhos
Apenas agridem
seus bicos 
nas peles dos vidros

Não sabem que as eras
das migrações

passaram



        Do livro "Cesto das canções com pássaros"

                       de Francisco Orban

terça-feira, 27 de outubro de 2015

33 poetas








Éramos 33 poetas
apesar das falhas do céu
dos talhos no chão da carne
amontoados sob o silêncio
das tardes com gomos de chuva
por cima da morte das baleias
e do jasmim
dizendo que assim era o plano
que ninguém morreria
no Outono
33 poetas
Como  Cristina  Maria
que tinha cheiro de hortelã
e maresia
e pele morena de porcelana
33 poetas
Assim como Luiz Carlos
batalhando no sol de São Gonçalo
ferido nos inúmeros sobrados
que trazia em si e não sabia
33 poetas
esperando a polícia todo dia
fosse inverno verão ou primavera
Isso num tempo distante
quando eu ia correndo
para o ginásio                                       
e o tempo estava estancado
não era como agora
hemorragia de aurora
Éramos como Edgar
- caçador de balões -
herói como todos nós
que sabia subir em jaqueiras
e nunca pensou
que iria enlouquecer
33 poetas
como Janda em Salvador
falando da guerrilha perdida
da adolescência perdida
de todas as coisas que não iam
mais dar certo
apesar do mistério da Bahia
e da dialética das ruas
em plena terça-feira de carnaval
no verão da anistia
Éramos 33 poetas
como Odemir
que escreveu um poema assim:
Marta, um homem não é um trombone
Poeta era Gregório
voltando do exílio
falando dos canaviais
e das lutas pela vida e pela paz
numa avenida paulista
corrompida de carros
Éramos 33 poetas
apesar do tempo ser um animal solto
a máquina de quebrar encantação
que antes não quebrava nada
mas hoje me quebra os dentes
e a cartilagem do rosto
Se desse para fazer girar a máquina
escreveria um conto
entre plantas e algas de sol
Ergueria nas paredes brilhantes
blocos de ventanias sumidos
e beberia contigo
nas fontes nas águas nos vinhos
nas cidades sem tempo
nos horizontes abertos
com a pele chamuscada
de marítimas vertigens
e perigos
Onde está Luiz maranhão
sumido em 1974?
ninguém sabe
ninguém responde
Havia uma bota no caminho
havia o cheiro de cilada e sonho
sobrevoando São Paulo
milharal de luzes
diamante aceso
na noite perdida
de 1975
Éramos 33 poetas
em Santa Teresa
longe da Avenida São João
do petróleo queimado
e das vidas queimadas inutilmente
nas ruas escuras
nos planos nefastos
onde baniu-se para sempre
a realidade e a ternura
Éramos 33 poetas
com planos na terra
com as almas brandas
e as noites soltas
mas não sabíamos
que um vendaval espalharia
os nossos versos
as vozes as cópulas
músicas sobrariam no ar
o tempo uma rede blindada
faria apagar da memória
os tratados das noites mornas
como se isso fosse possível
e Edgar ainda subisse em jaqueiras
Ernesto tomasse a sua cerveja gelada
Cristina com seu hálito de fada
o tempo com sua malha de máquinas
Telha frágil nó desatado
não revelou sua face aguada
só disse o seu lado concreto
que não vai dar no mar
mas no deserto
e assim se proclamou
súdito da cidade
senhor da dor e da saudade
Embora no calendário do dia
eu não vejo o último verão
sinto os 33 poetas
com seus violões velhos
e gastos
tomarem de assalto
o dia


                 Do livro "Sobrado das horas"

                             de Francisco Orban

Mundo que se basta



O mundo que se basta
em mim
não é o que eu imaginava-
Eu iria mais longe
nos meus navios

Mas o mundo que se basta
em mim
é o meu legado:
a lembrança dos ciganos
as vidas sem sobrenome
os inventários abertos

As lendas das almas
retalhadas
nas palavras dos meus versos


          Do livro "Sobrado das horas"

                       de Francisco Orban







Cigano antigo








Sou um cigano antigo
de uma época antiga
Estou nessa cidade
de paraquedas
e meus olhos destilam
violinos e barcos a vela

Sou um cigano
no meio de uma cidade
moderna
e meus pés pisam o chão
de um país sem fala

Não sinto o chão dos tombadilhos
as luas
os sinais dos cometas

Sou um cigano antigo
na orla do tempo
com um brinco
na orelha

              Do livro " Sobrado das horas"

                      de Francisco Orban

Tempo

Tempo
eu andava contigo
pela orla do mar
quando tudo era silêncio
e ventania
E foi assim que vivi
vestido de Carlitos
por dentro da roupa oficial
colhendo em minhas mãos
o rosto das mulheres

Tempo
por ti quebrei e colhi cidades
provei de barcos e naufrágios
mas nunca soube me deter
diante da primeira aurora
diante do primeiro amor
diante do rosto que foi embora
Eu nunca soube me deter


Do livro "Sobrado das horas" de 

          Francisco Orban

Esquecimento





Cansei de ti
Para ti oferto
as coisas descidas
da cruz do tédio.
Meu delírio de Carlitos
embriagado
Um pó de tardes
com lua
Uma utopia de
espanto
E se isto não te bastar
Te entrego os silêncios
do mar
a tarde encantada
de um país proscrito
o ritmo dos búzios
e das bailarinas


  Do livro "Sobrado das horas"

                 de Francisco Orban


Fada urbana



Fada urbana da madrugada
chegue à janela
me afague com sua boca
me chame
E eu lhe mostro as mãos feridas
pelas estrelas da noite
e você me mostra
o que ficou
das lendas e das
algazarras



 Do livro "Sobrado das horas"

             de Francisco Orban

Constatação







Desautorizado
entre ruas e vis paixões
Onde estás, abandonada?
É nosso o quarto intermediário
entre o amor e o nada

Desautorizado
entre correntes marítimas
fichários secretos
e tristes arquivos

Bandido procurado
criador de poemas solares
e mínimas ousadias

Impossível sonhar
quando me deito não durmo
Ou é a sombra do nada
ou é a sombra do mundo


 Do livro "Sobrado das horas"

                de Francisco Orban

Procuração do mar



Artesão dos signos
procurador do mar
O ar e seus inquéritos
fraudados
A vida e suas alianças
frágeis

Domo o mundo



Domo o mundo
e o mundo me cega
É um jogo
é uma luta
existir nesta terra

Ensaio rotas
arrumo rumos
e trancam as portas
Em vez das flores
nascem musgos

Eu domo o mundo
e o mundo me anota
no seu boletim
de brincadeiras


 Do livro "Sobrado das horas"

                  de Francisco Orban

Uma forma de barcos







Desse porto de lógica
dessas mãos quase frias
dessa noite branca
quem me poupará?

Quando formos só
uma forma de barcos
não os barcos
um resquício do sonho
não o sonho
um esboço da carne

Quem me ajudará
quando o mar invadir
a rua
cobrir edifício
afogar a lua

E às três da tarde
Após os sinos
Após os signos

A fala secreta disser
“Cala-te, esse é o ingresso”


            Do livro "Sobrado das horas"

                           de Francisco Orban

Debandada






Tivemos que deixar o país
porque era noite
e uma constelação
de beija-flores
bicavam as nossas costas

E o cinza andava solto
e a lua de prata queimava o ventre
de nossas namoradas

Tivemos que deixar o país
as garagens de tempo
e pisar no que era nosso
no país dentro do país


   Do livro "Sobrado das horas"

                de Francisco Orban

Encantado







Encantado não era
o lugar
Encantado era
eu



Do livro "Sobrado das horas"

                                           de Francisco Orban

Ladrilhos



Nas ruas da tarde
os homens sangram os dedos
nos ladrilhos das palavras
Mas ninguém sabe
que canção muda
ficou retida
que ave de silêncio
pousou no ombro

da encantação


           Do livro "Sobrado das horas"

                         de Francisco Orban

Estrela de outro planeta

            








Na minha infância
também era assim:
A terra era a estrela
de outro planeta

Sete gatos






Tenho vida de sete gatos
e cérebro de homem
que ama
A noite tece infinita
tramas e pássaros

em chamas



          Do livro "Sobrado das horas"

                                 de Francisco Orban

Navios desatentos








Também se matam os navios
desatentos
deitados no horizonte
com seus tombadilhos
e sonhos

Também se cometem crimes
fora da rota do vento

Por causa de um momento
- um hálito de sereia -

deita-se tudo a perder

             
                 Do livro "Sobrado das horas"

                                de Francisco Orban

Zombador







Agora cansei de mim:
vou ser zombador
Com minha alma de pano
jogarei a saudade
nas valas estreitas
coloniais

Estou cansado da tecnologia
das ruas
do metal anêmico
e da palavra faturar
que não rima

Quero uma namorada morena
com os peitos apontados

para o meu delírio


                 Do livro "Sobrado das horas"

                              de Francisco Orban

Fala das águas

                  






Mar:
encontrei num pedaço
de búzio
mil noites engavetadas
que eu botava no ouvido
para ter a fala das águas
e a dimensão do mundo
feito um menino maluco


            Do livro "Sobrado das horas"

                           de Francisco Orban

O tempo






O tempo matava os edifícios
o tempo quebrava as árvores brandas
Nunca fiz proselitismo
mas nunca fui senhor
de tantos silêncios
como hoje

Nas mangas da minha camisa
os sons dos violinos
as tardes nefastas

e muitos fratricídios

             
                      Do livro "Sobrado das horas"

                                 de Francisco Orban