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sábado, 29 de dezembro de 2012

Que seja janeiro


Que seja janeiro
de onde emergem as palavras
içadas dos parapeitos
dos dias que aqui me chegam
e se erguem para o nada

Que seja janeiro
a foz do primeiro beijo
e também deste copo
a espantar-me de mim mesmo

E que de janeiro voltem
os comboios da infância
com seus navios perdidos  
no dorso dos horizontes

E que assim janeiro nos deixe
sem as respostas procuradas a esmo
Só encontradas nos teus olhos janeiros
e nessa enseada a que chamo de teu corpo

         




sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Torniquete


No espanto deste dia
vejo sempre estas tendas
de sonhos encobertas
onde exaurido sigo poeta
para as batalhas que sei perdidas

No espanto deste dia
ando nesta rua só de ida
para o porvir que ninguém sabe
a fazer um torniquete que encobre
a sangria dos embates estelares

                     Francisco Orban

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Meus navios


Durante muito tempo quis ter a consistência dos navios. Não os reais, mas os que navegam na mente. Já que achei que o mundo é  apenas um acidente de percurso, dei aos meus navios um mar acidentado, para que pudessem velejar sob as escarpas das águas e destinos. Também lhes ensinei a língua dos horizontes para que pudessem atravessar o caos do mundo sob a lua e também um mapa medieval, para que chegassem aos mares dos sonhos. Durante muito tempo meus navios tiveram um intrigante semblante. Pareciam monumentos móveis em suas marinas distantes, a tocaiar aves ribeirinhas e amparar os pescadores cegos. Meus navios se foram e para mim ficaram as calmarias. Com elas faço inventários de areia, dia após dia.

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Homem do mar


Sou um homem do mar
e com ele velejo
num navio
sem rumo

Num navio de velas
tecidas de sol
e outonos dobrados
emprestados do mundo

Sou um homem do mar
que espanta os
cansaços

Para acordar
e se pôr
a serviço das águas

                                    Francisco Orban

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Mapas


            Seria impossível a noite se os versos soltos não a deflagrassem. Encontrei isso escrito em uma pétala. E depois num búzio desses empalidecidos pelas águas e pelo tempo. De início não liguei, mas algo mudou por dentro. Descobri, nas horas seguintes a febre dos que se alimentam das ausências. O mundo estava pronto. Os pardais dormiam como os sonhadores dividindo os cantos das praças. O verão articulara-se com as cigarras e de certa forma movia a grande engrenagem coletiva que interligava todos os seres. Os mapas que sempre trouxe agora delineavam destinos. A palavra talhada em pétala era uma senha. Ao grande país a ser encontrado não se chegava em círculos. Bem-aventurados os que seguem a linha reta da própria vontade.

                             Francisco Orban

domingo, 23 de dezembro de 2012

TABULEIROS

                                       TABULEIROS           Francisco Orban



            Um homem, desses que moram a vida inteira em um casebre, sonhou que Deus lhe dizia que a vida poderia ser dotada de aventuras e prazeres inenarráveis. Quando acordou, ao contrário de Dante em Ravena, não teve a impressão de que algo infinito tinha se perdido e que a revelação era por demais grandiosa para a sua pequena condição de homem. Pelo contrário, cada palavra pronunciada tinha se entranhado na carne de seus afetos e, agora, engrandecido pelo que sabia, já não concebia morar em brejo de lamas eternas na caça de pequenos moluscos para a sua sobrevivência. - Deus sabe o que faz, intuiu consigo, e partiu  com seus andrajos para a cidade mais próxima para relatar aos demais homens a revelação divina e toda a euforia e encantamento que dela adveio. No lugarejo, entretanto, não encontrou ninguém que lhe desse atenção nem foi ouvido pelos transeuntes apressados que nem tomaram conhecimento de sua existência. Com o fim do dia, a noite caiu subitamente como um grande tabuleiro de trevas e o homem descobriu que apenas um bêbado o escutara confusamente e que continuava só e em um mundo sem amor e que a revelação gloriosa com que tinha sido contemplado apenas despertara nele uma dor absurda e mesclada de indignação e revolta. Então adormeceu e Deus, compadecido dele, lhe disse em sonho que esquecesse tudo o que ouvira. Quando acordou, sequer se lembrou de que algo infinitamente assombroso se perdera e assim viveu o resto de sua vida catando os moluscos na lama do brejo onde nascera, confortado e protegido pela impossibilidade de compreender a si e ao mundo

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Balsa do tempo

   Balsa do tempo

Esta é a balsa do tempo
de uma terra sem presságios
da qual só guardei o vento
A balsa do tempo
fora das ramagens das horas
abarrotada de luas
com bússolas
que já não norteiam
os habitantes das ruas
Estes são os versos amarrotados
que ferem a noite
com seus signos e seus trocadilhos
rotos
Palavras
com que posso desarrumar
o mundo
                   Francisco Orban

Canoas

                                  CANOAS                 Francisco Orban

         As canoas que um dia nos levaram hoje são esses veleiros, que do mar alto nos assistem em terra, sem que saibamos de suas pretensões. 
         Como os veleiros, amei um dia uma mulher, quase menina, que  de mãos dadas comigo resolveu andar pelos garimpos silenciosos do coração. E em se tratando de corações de  adolescentes, quanta dor rege esses seres feitos de transição e fúria, pois somos, nessa idade, mamíferos desgarrados, provisoriamente salvos do caminhar da manada (para onde?) se não para a sua própria devastação.
         Posso assegurar que ela me amou, e que juntos singramos uma linha no horizonte, deixando nossa marca entre as flores de um país que nunca aconteceu. Pelo chão de areia e seguindo os costados do mar, pisamos os búzios do esquecimento que o mar expelia, também em sua viagem pontuada de veleiros. O que ficou dessas tardes, que eram tabuleiros de sol e ventania? O que ficou de seu corpo belo, mais belo ainda pelas paisagens que construí e visitei? Não fosse o gosto de seu hálito, nada teria retido. Pertence às cinzas de um carnaval suprimido esta fábula que virou encantação e por isso dói neste ônibus das cinco, onde cumpro o roteiro dos mesmos caminhos. Como os veleiros, alguns amores deixaram descuidadamente que o vento do tempo os abatesse, com sua crueldade e seu crestar de horas. Mas não foi esse o caso. Como os veleiros, deixamos distraidamente que o mundo nos tangesse para longe, quando para longe virou a única rota de nossos destinos. E o que guardo dela são seus grandes olhos, perplexos, infinitos.                                                                      



domingo, 16 de dezembro de 2012

SINGELO FINAL


Constatar que as mãos pareciam vagas foi a primeira lembrança, depois do acidente no mar, a misturar-se com diálogos embebidos em controvérsias inúteis. Tudo começara na busca de um verbo. Um empreendimento quase mecânico, se não ocultasse um sonho.
O verbo procurado deveria estar entre as duas últimas letras de um alfabeto proscrito, em decorrência de uma guerra ocorrida, no p...
enúltimo século que antecedeu nossa era. Contudo, uma lei que rege os jogos e preconiza a inutilidade dos atos falou mais alto. O verbo, dotado da infinita capacidade de realizar o pleno discernimento, fora conjugado por um guerreiro idoso, ferido em combate por flecha. Esse era o único registro desse vernáculo imemorial.
Alguns dos que viveram esse embate já esquecido, entre tantos, assistiram ao balbuciar do guerreiro agônico e tentaram decifrar-lhe a frase e a liturgia que a precedia. Mas dele só conseguiram escutar palavras, que lhes devolviam as lembranças do início do mundo: O verbo fora conjugado em um tempo verbal desconhecido e, além disso, sussurrado pela boca moribunda dos que se despedem das palavras.
Com os anos, nem dos rumores desta lenda, precariamente resgatada, ficou registro. Uma briga de irmãos em uma obscura aldeia, onde haveria mais tarde um país, alterou para sempre a conjugação e o sentido da palavra original. E por isso a história humana foi para sempre desfigurada, da mesma forma, como um cometa alterou acidentalmente sua rota há milhões de anos, possibilitando com isso a existência dos homens e dos livros. Agora, as palavras resgatavam seus verdadeiros contornos. O acidente no mar fora para aquele pescador a última etapa de seu percurso de mapeador das lembranças. Resignou-se doravante a ser o tutor de seus próprios esquecimentos. Abdicou então para sempre da idéia de perseguir o vernáculo, para o qual não tinha sido eleito. Feito isto, retirou-se para uma vida anônima e envelheceu triste, sem perceber que um menino nasceria, que conjugaria corretamente o verbo apagado da memória de seus ancestrais. E isso abriria uma nova idade de luz sobre o mundo, seguida de outra era de violência e trevas, e assim sucessivamente, até que bruscamente a odisséia humana seria interrompida por um cometa que acidentalmente alterou sua rota. Então seríamos conjugados pelo esquecimento e por um Deus que nunca vimos, mas que o guerreiro ferido viu nos estertores da morte, quando se negou a dizer o que vos adianto nesse singelo final. Ele apenas anunciou que acontecemos.
Francisco Orban