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terça-feira, 29 de março de 2011

Escultura

Francisco Orban 


Escrever versos é esculpir palavras
Nada que as mãos do Outono
não desfaçam
Escrever versos
é esculpir na pedra
até que o mármore
da palavra
nasça

domingo, 27 de março de 2011

QUILOMBO DE CIMENTO

            Texto de Francisco Orban

         Há dez anos que moro neste quilombo de cimento a que chamam de cidade, se suas janelas blindadas não desmentissem este nome. Enquanto se aguarda em vigília o final da noite e dos tiroteios, divago com a lembrança dos pássaros revoando. Entre os derradeiros prisioneiros de uma guerra não declarada, refaço o tempo das manadas de onde me desgarrei para esta pátria sem sonhos, da qual não sei se existe volta.
         Já tive um itinerário próprio, com passos de mar e mãos de súbitas ventanias e conheci o papel dos veleiros e sua incursão no país das águas. Quanta falta me faz esse roteiro. Com ele eu cumpria estradas e meu caminho no mundo.

 
Do livro de Francisco Orban, Leilão de acasos, (editora Garamond
tel 021.25049211)



sexta-feira, 25 de março de 2011

OBJETOS NÔMADES




  Texto Francisco Orban

         O rosto opilado dos sonhadores já não fere a lua. Nem mesmo quando ela, afastada de sua função, a eles lança a luz de seus barcos.
         Esse foi o primeiro sintoma do vento que vi naquele homem alquebrado pelas mazelas do mundo. Vinha de um inverno assolado pela memória de tantos outros e trazia no rosto o estigma dos sonhadores,  a solidão sem fim que esse enigma engendra, assim como o ar dos andarilhos. Nunca entendi sua morte, súbita e velada apenas pelos pássaros do mar em sua passagem pelos confins da terra.
         De seu inventário de objetos nômades, só ficaram uns sapatos velhos, gastos pelo caminhar nos tombadilhos e planetas que nunca supomos. Envolvidos só conosco, não podemos entender a origem desses sonhos e desse povo, que não buscou nenhum lugar e só se compraz com o hábito de escutar o  silêncio da terra.
         A harmonia com os fenômenos minerais, o intenso amor pelo mar, os veleiros que largaram no horizonte. As bandeiras desfraldadas  de  pátria alguma  fizeram dos sonhadores a antítese desse tempo, onde não cabem mais os juramentos de transcendência e os caminhos que os norteavam em seu movimento  de  emigrantes da terra.

Do livro de Francisco Orban, Leilão de acasos, (editora Garamond
tel 021.25049211)

sábado, 19 de março de 2011

PAÍS FEITO DE ACHADOS

       Texto Francisco Orban

         Acordei com uma palavra vinda de um rio. Era o início do conto que  escreveria, não fossem tantos outros que se revezavam. Trouxe este conto para a linha de frente, afastando imagens e vernáculos. Agora, posso escrevê-lo, mas antes o mapeio com um barco, pois temo no percurso achá-lo raso, para os longos pensamentos que abraço. Munido de uma tarrafa, jogo-a nos olhos das palavras, em águas já não claras, onde a poesia e as metáforas circundam inocentes minha mente. Agora, face a face com seu teor, me emociono com seus horizontes de esquecimento, seus corredores de vento, onde somos arremessados em suas margens. Depois enveredo por um labirinto onde os deuses vedam a passagem. Lá estou dentro do conto, no âmago de cada sentido. Cada palavra surpreendida revela uma nova vida, cujo canto pode embriagar-nos e para sempre prender-nos em um país feito de achados.

Do livro de Francisco Orban, Leilão de acasos, lançado no dia 5 de maio de 2011, no Museu da República





Canoas

           Texto de Francisco Orban

         As canoas que um dia nos levaram hoje são esses veleiros, que do mar alto nos assistem em terra, sem que saibamos de suas pretensões. 
         Como os veleiros, amei um dia uma mulher, quase menina, que  de mãos dadas comigo resolveu andar pelos garimpos silenciosos do coração. E em se tratando de corações de  adolescentes, quanta dor rege esses seres feitos de transição e fúria, pois somos, nessa idade, mamíferos desgarrados, provisoriamente salvos do caminhar da manada (para onde?) se não para a sua própria devastação.
         Posso assegurar que ela me amou, e que juntos singramos uma linha no horizonte, deixando nossa marca entre as flores de um país que nunca aconteceu. Pelo chão de areia e seguindo os costados do mar, pisamos os búzios do esquecimento que o mar expelia, também em sua viagem pontuada de veleiros. O que ficou dessas tardes, que eram tabuleiros de sol e ventania? O que ficou de seu corpo belo, mais belo ainda pelas paisagens que construí e visitei? Não fosse o gosto de seu hálito, nada teria retido. Pertence às cinzas de um carnaval suprimido esta fábula que virou encantação e por isso dói neste ônibus das cinco, onde cumpro o roteiro dos mesmos caminhos. Como os veleiros, alguns amores deixaram descuidadamente que o vento do tempo os abatesse, com sua crueldade e seu crestar de horas. Mas não foi esse o caso. Como os veleiros, deixamos distraidamente que o mundo nos tangesse para longe, quando para longe virou a única rota de nossos destinos. E o que guardo dela são seus grandes olhos, perplexos, infinitos.

            
Do livro de Francisco Orban, Leilão de acasos, (editora Garamond
tel 021.25049211)

terça-feira, 15 de março de 2011

TABULEIROS

                                   Texto de Francisco Orban



            Um homem, desses que moram a vida inteira em um casebre, sonhou que Deus lhe dizia que a vida poderia ser dotada de aventuras e prazeres inenarráveis. Quando acordou, ao contrário de Dante em Ravena, não teve a impressão de que algo infinito tinha se perdido e que a revelação era por demais grandiosa para a sua pequena condição de homem. Pelo contrário, cada palavra pronunciada tinha se entranhado na carne de seus afetos e, agora, engrandecido pelo que sabia, já não concebia morar em brejo de lamas eternas na caça de pequenos moluscos para a sua sobrevivência. - Deus sabe o que faz, intuiu consigo, e partiu  com seus andrajos para a cidade mais próxima para relatar aos demais homens a revelação divina e toda a euforia e encantamento que dela adveio. No lugarejo, entretanto, não encontrou ninguém que lhe desse atenção nem foi ouvido pelos transeuntes apressados que nem tomaram conhecimento de sua existência. Com o fim do dia, a noite caiu subitamente como um grande tabuleiro de trevas e o homem descobriu que apenas um bêbado o escutara confusamente e que continuava só e em um mundo sem amor e que a revelação gloriosa com que tinha sido contemplado apenas despertara nele uma dor absurda e mesclada de indignação e revolta. Então adormeceu e Deus, compadecido dele, lhe disse em sonho que esquecesse tudo o que ouvira. Quando acordou, sequer se lembrou de que algo infinitamente assombroso se perdera e assim viveu o resto de sua vida catando os moluscos na lama do brejo onde nascera, confortado e protegido pela impossibilidade de compreender a si e ao mundo

                                

Do livro de Francisco Orban, Leilão de acasos, (editora Garamond
tel 021.25049211)


quinta-feira, 10 de março de 2011

Meninos

                                                      

                                                                                 Texto Francisco Orban

Em algum lugar da memória esta lembrança ficou retida. Um cinturão de água cingia os sonhos dos meninos, que eram mínimos, mas traziam consigo a companhia do sol. Naquelas tardes, misturados às areias e às folhas secas dos sonhos, desconhecedores do mundo e da fugacidade das coisas, os meninos achavam-se ao acaso da eternidade, na sua condição de meninos a brincar com a areia do mar e seus destinos.
         Creio que foi assim que se encontraram. Sobre as ondas do mar que quebravam perto. Eles não sabiam que crescer seria perde-se para sempre daquele estado de comunhão que os unia com toda sorte de seres ainda não banidos da terra.
         Eles não sabiam (sabiam?) que o navio do tempo os levaria e que as grandes tardes que pareciam países de sol e fuga, se perderiam, num inimaginável processo de renúncias seguidas, que envolviam o sistemático exercício do esquecimento. Então, muitos anos depois, já envoltos no processo de transformar as lembranças em fatos desimportantes, reencontraram-se junto ao mesmo mar, que era a terra de suas infâncias, e agora desgarrados da eternidade, mas encharcados de rotinas, não se deram conta de como foram felizes e de quanto estavam velhos e afastados da pátria de si mesmos e de como suas mãos já não mostravam as pétalas de um grande Deus solar, que um dia os guiara.

               
Do livro de Francisco Orban, Leilão de acasos, (editora Garamond
tel 021.25049211)